
O jardim da casa azul foi construído por uma mulher que dependia de tarja preta para dormir e muita cafeína para acordar. Uma vez, ela recebeu uma muda de suculenta dentro de um copo descartável de cafezinho – foi uma lembrancinha de um aniversário obrigatório. Sem saber por quê, a mulher fincou aquele projeto de planta num vaso, sem esperanças de novidades em sua vida, mas para a sua surpresa, a bichinha vingou. Não demorou muito para a mulher levar para casa uma outra planta, meio roxa, meio verde, meio vinho, com desenhos hipnóticos nas folhas. Depois disso, quase num piscar de olhos nasceram o Jardim da Casa Azul e uma nova mulher, a mulher do jardim.
Acostumada a acordar e viver sua vida de planta como qualquer outra, a Planta Fantasma (Graptopetalum Paraguayense) era muito tímida, sensível, simples e reclusa. Gostava muito de ficar em casa e cuidar dos filhos e das atividades domésticas. Garantir a fotossíntese estritamente necessária era o suficiente para uma vida plena, assim pensava a plantinha de estatura baixa, que chegou ao jardim no tal copo descartável de cafezinho. A verdinha desenvolveu a grande habilidade de equilibrar suas folhas robustas, pesadas e esbranquiçadas, em formato de flor, sobre seus 15 cm de altura de caule fino, o que às vezes lhe era um problema.
– Bom dia, Dona Fantasma! O que a senhora vai levar hoje? Temos umas folhas secas que acabaram de chegar. É a última moda. Vão ficar lindas na terra da senhora!
– Ah obrigada, Orelha de Mickey (Cacto Opuntia Microdasys), mas hoje eu preciso de um palito de churrasco bem resistente. As minhas folhas estão cada vez mais pesadas e minha coluna está muito dolorida.
– Eu tenho esses palitos aqui, bem robustos e práticos de usar. A senhora amarra o seu caule nele e em uma semana a senhora vai ficar boazinha e com a coluna bem ereta.
– Obrigada, Orelha de Mickey, tenha um bom dia!
– Bom dia, querida!
Tão diferente da Planta Fantasma quanto possível era a vistosa Coléu (Coleus Scutellarioide), a tal planta meio roxa, meio verde, meio vinho, com folhas hipnóticas, a segunda a chegar no jardim. Planta alta, sensual, despachada, sociável, perene, muito experiente, sua família veio do sudeste asiático. Todos a ouviam com muito respeito, afinal não era comum naquele jardim uma planta “pau para toda obra”. Ela se adaptava muito bem na sombra ou sol pleno. E por incrível que pareça, era a melhor amiga da baixinha e tímida Planta Fantasma – uma verdadeira aula de pluralidade para o mundo humano que olha desconfiado o vizinho, se o camarada tiver uma pele mais esverdeada que a dele.
As duas se divertiam muito quando eram adolescentes e aprontavam nas aulas chatas de inglês da professora Samamba (Nephrolepis Exaltata, vulgo Samambaia-americana). Uma vez foram suspensas da escola quando trocaram o adubo de húmus de minhoca da metida da roseira por um composto de farinha de osso. As gatas da mulher do jardim enlouqueceram com o novo cheiro da terra da moça e cavucaram todo o seu vaso, deixando a roseira nuazinha na frente de todos!
A vida no Jardim do Terraço era harmônica. Era uma terra de invejar até a república de Platão! Tratamentos diferenciados para os diferentes, esse era o lema, ou seja, não havia uma receita de bolo para lidar com os viventes verdes e vermelhos ou amarelos e marrons, de baixa ou alta estatura. Decerto era às vezes difícil saber como agir em meio a tanta diversidade, mas cada uma se mostrava pronta ao diálogo à sua maneira. Um dia, a bela e frágil Planta Fantasma teve que falar grosso com a vaidosa e exuberante Hibisco, que insistia que a amiga estava muito pálida, que precisava ir ao hospital. Havia um pó fosco e intenso que deixava a suculenta quase transparente. Demorou para a bronzeada hibisco entender que era a natureza da amiga ser tão translúcida. Afinal, seu nome não era Planta Fantasma por acaso.
Outra vez foi a confusão gerada por um mal entendido, que quase acabou em delegacia. Coléu estava tomando banho e se assustou com o avanço das trepadeiras das plantas jiboias que avançavam no seu banheiro. Só depois de tomar umas bofetadas, as enxeridas puderam explicar que a natureza delas era explorar o espaço, o ambiente, o vaso não era o limite para esses jovens.
– Calma aí, Coléu! A gente só tava dando um rolé por aí. Não precisa ficar brava. Não era a nossa intenção invadir sua privacidade… mas por que você não fechou a porta? – Um deles falou com malícia.
Nessa terra justa, os problemas eram resolvidos por meio da boa e velha conversa. Todos tinham vozes e todos se importavam uns com os outros. Mas as coisas foram mudando aos poucos, sem que se percebesse, no início.
Tudo começou com a chegada do Beldroegão (Talinum Paniculatum). A mulher do jardim ficou em êxtase com ele. Ganhou de um amigo a mudinha de sua primeira PANC (planta alimentícia não convencional). Um bebê lindo e inofensivo, mas que em pouco tempo mostrou a que veio: queria crescer e dominar o mundo! Ninguém desconfiou que aquelas mudas graciosas que começavam a se infiltrar nos vasos do Jardim da Casa Azul fossem tão longe. Transformaram-se em verdadeiros soldados e se multiplicavam em todo o território, ocupando todo e qualquer espaço livre e até mesmo os já habitados. A primeira a reclamar na prefeitura foi a Mãe-de-milhares (Kalanchoe laetivirens):
– Saí de casa para trabalhar e quando voltei meus filhos haviam sido expulsos da própria casa por esses terríveis invasores! Vocês precisam fazer alguma coisa antes que seja tarde demais!
Não existe o bom e o mau no mundo das plantas. É parecido com o que acontece com os seres humanos. Beldroegão não tinha más intenções por querer, assim diziam seus defensores.
– Ele só quer um espaço para criar a sua família! Atirem a primeira pedra quem não quer o mesmo! – Argumentou a Orelha de Michey.
– Sua espinhenta, você diz isso porque você se alastra igual a ele. Espeta quem atravessa o seu caminho e vai ganhando território. Sua nazista, você quer povoar o mundo só com a sua espécie! – A samambaia atirou uma pedra no cactus, que perdeu um braço com o golpe.
– E você? Pensa que eu não sei que você chegou de mansinho junto com os dinossauros e está aqui até hoje? O que você esconde, Professora Samamba? Qual o segredo de atravessar as Eras? Boa coisa não deve ser!
Uma balbúrdia geral naquele jardim do amor! Ninguém imaginaria que uns se voltariam contra os outros.
– Plantas, acalmem-se! – Planta Fantasma berrou e todos se calaram. Nunca a tinham ouvido falar tão alto. – Vamos manter o foco da discussão. Estamos falando aqui de uma planta invasora que se espalha com muita facilidade. Beldroegão não entende como vivemos aqui. Ele não compreende a biodiversidade porque ele apenas enxerga um horizonte de beldroegas. Ele vai unir todas as suas forças e exércitos para garantir a maior extensão de terras possíveis para os seus. Uma vez a mulher do jardim me disse que tem muita gente assim, que só pensa em sua “bolha”. Senhor Prefeito, viemos aqui para reivindicar que as autoridades tomem alguma providência.
A caminho de casa, após a promessa do prefeito de que ele cuidaria de tudo (as autoridades são iguais em todos os reinos!), Planta Fantasma se deu conta de que não vira a amiga Coléu na prefeitura. Logo ela, que não perdia nenhuma aglomeração, independentemente do motivo, e se não houvesse um motivo, ela gostava mais ainda. Resolveu ir a sua casa. Entrou sem bater, como de costume e encontrou a amiga desmaiada num canto. Tocou em sua terra e ela estava completamente seca. Achou muito estranho porque a mulher do jardim nunca se esqueceu de molhar uma planta sequer. Era muito dedicada e cuidadosa. A pequena foi às ruas pedir ajuda e ficou horrorizada com a situação da cidade.
Os invasores praticamente tomaram todos os vasos. Como uma titã, a mulher do jardim arrancava milhares de mudas de beldroegão e os comia vorazmente, ainda vivos! A suculentinha percebeu que as outras plantas também estavam muito secas, assim como a Coléu. A frenética mulher lutava tanto contra a tal PANC que acabou se esquecendo de dar água para as plantas. Por dias. Todavia, como a Fantasminha tinha um reservatório de água, próprio da sua constituição, não sentiu o impacto da seca.
A terra que um dia foi harmônica e bela virou o inferno de Dante. Era o começo do fim do mundo. Os beldroegões se alimentavam da comida das outras plantas, moravam em suas casas, bebiam suas águas. As plantas ficaram fracas e suscetíveis a ataques de pragas. Plantas corriam para lá e para cá, rezavam, se mudavam, saqueavam, assaltavam, todas desesperadas. E para piorar, as plantas interpretaram o definhamento da Coléu como a morte inevitável para todos. Se a guerreira Coléu, vitoriosa de tantas situações difíceis ao longo da vida, não resistisse, ninguém mais sobreviveria no mundo. O pânico se instalou naquele lugar. Ninguém queria morrer antes de completar o seu ciclo. “O sertão virou mar”, diria Antônio Conselheiro, se visse o que aconteceu no Jardim da Casa Azul: cactos se afogando de tanto que reservaram água para lidar com a seca; plantas jiboias secando dentro de vasos cheios de água, por se recusarem a beber o líquido porque acreditavam estar envenenado; trepadeiras rastejando no ar, roseiras se despetalando e entregando suas vidas, como kamikaze, para as unhas afiadas dos gatos que frequentavam o jardim.
A situação foi ficando grave e insustentável com a tomada territorial dos beldroegões. As autoridades foram acionadas e criaram a CECJCA – Comissão de Emergência de Contenção no Jardim da Casa Azul. Houve toque de recolher nesse dia. Barreiras e barricadas de pedras foram montadas em todo o jardim para que os beldroegões não fincassem raízes. A Planta Fantasma conseguiu passar pelos obstáculos nas ruas e voltou à casa de Coléu. A amiga, que um dia foi uma diva da beleza e força, permanecia murcha e caída no vaso. Com todas as forças de que dispunha a baixinha apoiou a companheira em seu próprio corpo para mantê-la em pé, perdendo assim quase todas as sua folhas, com o peso da melhor amiga.
No dia seguinte, a mulher do jardim estremeceu de tristeza quando viu sua amada Coléu moribunda de um lado, e do outro, a Planta Fantasma quase sem folhas. Um sentimento de frustração a invadiu. Como pôde deixar aquilo acontecer? Por que se deixou seduzir pela farta beldroegão com aquelas microflores rosas, que apareciam à tarde para inebriar a sua visão e não perceber o real plano de domínio desta PANC ardilosa e gostosa? Olhou em volta e notou que todo o seu universo verde estava doente. Não poderia ficar ali parada assistindo a tudo sem poder fazer nada. Era a única que poderia salvar suas meninas, que àquela altura estavam infestadas por cochonilhas e pulgões. Quando as plantas passam fome e sede, as pragas fazem a festa. E quando a infestação de pragas é grande, somente armas poderosas podem enfrentá-las. Precisava combater aquelas sanguessugas. Levantou a cabeça, suspirou e pegou a bolsa:
– Já sei! Vou ao shopping comprar um Dimmy Pronto com Gatilho 500ml. Vou comprar logo dois!
Tudo estava tão caótico! O poderoso inseticida que a mulher do terraço comprou no mercado não adiantou. Ela pirou também. Não sabia mais o que fazer. Deu água demais, deu água de menos, matou várias plantas de tanto alimentá-las, de tanto privá-las de alimento. A mísera mulher viu seu lindo jardim se transformar quase em um cemitério vegetal. Mais que isso. Ela morria também. Tudo estava conectado, ela, as plantas, a vida e a morte. Parecia o fim.
A humana lembrou-se de tudo. De quando o seu sonho de jardim começou. Foi durante a pandemia. Todos os dias ela tirava alguns minutos de sua jornada de trabalho em home office, para ficar mais perto de seu mundo verde. Eram pausas mais que bem-vindas, eram necessárias! A mulher passou a entender melhor suas amigas vegetais e vice-versa. Uma verdadeira relação de amizade nasceu naquele espaço.
– Ei, cuidado aí! Eu sou um cacto! Não dá para ver não? Não gosto dessa água toda! Quer me matar, sua louca? – Reclamava a Orelha de Mickey, dando espetadas doloridas na mulher. Depois de ficar com as duas mãos cheias de espinho, a mulher aprendeu a lidar com os seus queridos cactos. Assim como aprendeu a lidar também com a Samambaia, que fazia a pirraça de sujar todo o jardim com folhas secas.
– Mulher do céu! Eu gosto de muiiiiiita água! Como é que você acha que eu dou conta de ficar toda linda com o meu look black power? – Resmungava a Samambaia, que morria de vergonha de ficar com o cabelo mirrado, quando a mulher só a banhava uma vez por semana. A mulher do jardim também se lembrou que foi assim, no meio do universo das plantas, que ela se esqueceu de tomar seus medicamentos uma vez, depois duas, e nunca mais precisou deles.
Naquela hora, a pior dor da infeliz mulher foi ver a Coléu e a Planta Fantasma cobertas de pragas num canto, gravemente doentes. Com um pano umedecido com óleo de neem a mulher tirava a nuvem de cochonilhas que asfixiavam aqueles serzinhos que tanto significaram para ela. Contou-lhes do dia em que elas chegaram ao jardim pela primeira vez, ainda em berçários. Contou sobre a vida de cada uma. Detalhe por detalhe. Contou como elas foram crescendo juntas. Contou como a mulher foi aprendendo sobre elas, com elas. Aprendeu a ter paciência, a esperar o ciclo, a esperar o tempo natural das coisas. Contou que sabia do que cada uma gostava e não gostava. Coléu era menina espaçosa, risonha, não tinha quem não se encantasse com suas cores vibrantes e chocantes! Já a Planta Fantasma era tão meiga, pequerrucha, delicada, pálida que só! E tímida também! A mulher olhou em volta e viu sua biodiversidade assassinada. Foi água demais? Amor de menos? Falta de diálogo? Queria saber por quê. Queria saber se dependia dela ou se estava além de sua compreensão. E foi assim que assistiu ao último suspiro da Planta Fantasma que a olhava com toda doçura.
Com uma tesoura de jardinagem profissional, podou a Coléu até ficar um cotoquinho. Confiou que ela se recuperaria e voltaria a ficar linda e exuberante como sempre foi. Retirou a Planta Fantasma do vaso, já morta. Não percebeu que deixou cair na terra a sua última folha viva. E para a alegria de todos, ela cria raiz mesmo paradinha, ainda que o mundo não mereça.
TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO SITE ENTRECONTOS, ONDE FOI PREMIADO EM UMA SELEÇÃO. link: https://entrecontos.com/2021/05/01/em-foi-panc-panc/