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– Hoje desisti de criar. É muita gente me pedindo coisas, favores, ajustes, ah que saco, viu! Às vezes, eu só queria relaxar um pouco e apreciar minhas coisas, meus seres, meus anjos e meus mundos. Tem gente que acha que eu só tenho esse… Doei inteligência para que, no fim das contas, só usem uma pequena fração dela… Olha só essa perna! Deveria ter feito com menos capricho, não faria diferença nenhuma, e eu teria dispensado meu sexto dia de trabalho com outras atividades mais frutíferas. Estou sendo muito duro? Pode até ser, mas por que quebraram as regras do jogo? Era para existir amor, beleza, e o que vejo? Desejo de lucro, de bens materiais, desgraças. E muitos ainda me culpam pelo que acontece por aí. Qualquer hora eu explodo tudo! Tudo o que tem dentro e tudo o que tem fora. Aí eu quero ver! “Misericórdia!”, alguém vai gritar, mas será tarde demais….

– Respira, respira! Deixa eu recapitular onde eu errei. Vamos começar pelos pés, tá bom? Os pés são para andar. Agora eu pergunto: as pessoas andam? Não falo de atropelar uns aos outros, ou cambalear um em cima do outro, tampouco falo de se levar aonde não deveria ir, ou não estar aonde é preciso, isso eu já nem quero mais discutir, mas eu quero dizer andar de verdade. Usar um pé após o outro, de forma que haja um passo coeso, firme, forte. Isso é um andar! Dá prazer em ver alguém que avança de fato, ou mesmo recua quando a situação assim o exige. Bem, acho que errei ao criar os pés porque a maioria das pessoas já desaprenderam a andar e não vão compreender esse membro esquisito, de forma alongada, que pendura dedos estranhos. Poderia tirá-los se eu quisesse. Os pés estão sobrando…

– Não acredito que o problema sejam os pés – alguém diz, enquanto escreve.

– Ah não?! Então talvez sejam os braços! Para que servem os braços, se não acolhemos? Um abraço faz toda a diferença, você sabe disso! Desarma o pior dos inimigos, se ele for sincero. O problema é que o abraço se transformou num tapinha nas costas, e esse não convence nem um inseto. Aliás, está surgindo uma nova ideia na minha mente. Poderia fazer outros insetos. Eles são variáveis, são coloridos, são versáteis, diferentes. Se o homem não abraça mais, qual a diferença se, em vez de seres humanos, eu criasse somente insetos? Daria menos trabalho nos contornos… Anota aí, Angélica…

– Acredito que o problema não sejam os braços…

– Pelamor! Já sei o problema! É o coração! Está faltando um coração visível a olho nu! Onde já se viu alguém sem coração? E se não vemos o coração, é como se ele não existisse! Um homem assim destruiria toda a humanidade e, digo mais, o planeta inteiro também! E se ele tivesse a chance, ainda galgaria destruições intergaláticas! Um homem sem coração pode ser muito mais cruel do que se imagina. Vou consertar isso, imediatamente…

– Não sei. Acho muito forçado você pôr um coração do lado de fora do peito deles. Deixa como está. O coração não é para ver, mas é para sentir. Você sente o coração que não vê. Vamos descansar. Amanhã continuamos.

– “Amanhã, amanhã”! Você e essa paciência que me irrita! Mas o pior é que descansar agora é o melhor a fazer.

Anoiteceu e amanheceu. Aurora e crepúsculo. Ele agora estava descansado, com energias renovadas. Voltou-se para as questões de sua criação.

— Estou quase convencido de que o problema deles é a falta de mobilidade. Isso deixa a pessoa irritada, de mau humor, limitada ao seu entorno. Mata a visão holista das coisas. Não crio algo para ser visto de um jeito só, ah não mesmo! Vou trabalhar nisso hoje. Por favor, me dê as ferramentas de que necessito. Aquela chave Philips de que gosto muito precisa estar aqui quando eu terminar. Para apertar no final, sim? A cabeça vai girar para a esquerda e para a direita, mas também para cima e para baixo, especialmente…

– Por que especialmente? – Pergunta Angélica.

– Hahahaha, você me mata de rir! Ora, que pergunta! Olhar para os lados é mais fácil e cômodo. Se errar a direção do seu caminho é só voltar tranquilamente para o ponto de origem. Por si só, isso já é muito positivo, mas não abrange muito mais do que se poderia, quando se olha para cima e para baixo. Nesse tipo de movimento, você consegue enxergar um trajeto muito diferente do outro. Sabe que será preciso muito mais esforço para retornar à base em caso de desvio. Se estiver em cima demais terá que descer. E a descida nem sempre é como dizem por aí, “pra descer, todo santo ajuda!”. Ela pode ser árdua e exigir da pessoa uma humildade esquecida. E se a pessoa estiver abaixo demais, ela sabe que a subida será difícil e exigirá muita força de vontade e dedicação no trajeto…

Depois de vários ajustes, finalmente acabou a sua obra e chegou o momento de testá-la. Apreensivo, quis ver o que as pessoas comuns acharam de seu empreendimento. Ligou sua TV e sentou-se divinamente, enquanto beliscava algo para comer. O celular não parou de tocar. O mundo inteiro o parabenizava e o enchia de elogios. Não era para menos, sua criação foi primorosa, ajustou o que havia errado anteriormente, sem se arrepender dos primeiros rascunhos, afinal até Adão e Eva foram testados. Orgulhoso do feito, aproveitou para tirar o sétimo dia de folga, merecido. Sentia-se pleno e feliz. Seu trabalho foi solitário, mas nunca sentiu solidão, ao contrário, esbanjava amor e fraternidade. Ele era quase sempre assim, puro amor. O mínimo que exigia de volta era um pouco de consideração e gratidão pelo que já fez por tanta gente, mas ele não era tão rigoroso quando as pessoas não lhe prestavam boas homenagens. Rogava-lhes uma praga vez ou outra, mas nada impossível de alguém superar…

– Angélica, querida, o que você quer? Está plantada aí na minha frente há mais de 150 mil anos! Fala logo o que tem para dizer!

– Devolveram muitos exemplares. Disseram que eles fazem muito pouco para o que esperam que façam, não voam, não se transformam em outras coisas, não dão saltos altos, enfim, chamaram de seres antiquados para a época em que vivem.

– Ah, chamam minha criação de atrasados? Mas é claro que são! Não dou asas às cobras! Imagina uma humanidade voando por aí! O céu não seria o limite, se isso acontecesse! Seriam mais egoístas, mais vaidosos, mas insensíveis, e se desumanizariam mais ainda. Se eu quisesse provocar o fim da beleza e simplicidade, eu teria criado monstros. Eu posso desenhar um monstro terrível num piscar de olhos, não me custa nada! É muito mais fácil criar um demônio do que criar um homem ou mulher, com medidas proporcionais, olhos, nariz e boca harmônicos bem no meio da face! Dá muito mais trabalho! Vão se ferrar os críticos! Quem são eles? Filhos de Plutão!

Bateu na mesa e na mesma hora tudo tremeu, com se a casa caísse.

– Meu Deus! Calma! Vamos pensar. Que tal um banho de sais e depois meditação? Você sempre pensa melhor após relaxar – os assessores se desesperam.

Foi convencido a se acalmar e pensou mais claramente. Desanuviado, chegou à conclusão de que não faria mais modificação nenhuma em sua obra. Surpreendentemente tranquilo dessa vez, autorizou que os exemplares circulassem livremente para os que gostassem e também para os que não gostassem deles. Se a obra era imperfeita, que a remodelassem. Se quisessem ver asas nos homens, que as implantassem eles próprios; se quisessem saltar alturas descomunais, que lhe colassem molas nos pés. E assim, a paz voltou a reinar. Uma paz calada, uma paz estranha, diferente das outras, com cara de quem abre mão e entrega ao livre-arbítrio o destino da sua criação, coisa que só entende quem gera.

– Angélica, avise os fornecedores e distribuidores que não vou modificar os bonecos. Eles são assim mesmo, com alguns defeitos, mas se eu mexer virarão outra coisa e a proposta não é essa. Eles são o que são. Quem não gostar é só não comprar.

– Entendi, Deusimar. Pode deixar que eu anotei tudo e vou passar as informações.