Escolha uma Página

Meu nível de abstração tem teto baixo, tenho que desenhar muitas vezes para eu mesma entender além do feijão com arroz. Juntei aqui algumas experiências minhas mesmo, mas também as que visitaram minha cachola e fizeram ninho, além de outras que vi por aí, e outras ainda, as quais não faço a menor ideia de onde vieram. Eu queria entender as neuroses. Não sou especialista em mentes, mas sofro igual a todo mundo, então procuro tirar o véu do bicho papão porque dizem que verei um mascotinho que não vai me prejudicar tanto, no máximo vai dar uma beliscadinha na ponta do dedo. E foi aí que topei com Carl Gustav Jung e me apaixonei, claro. Ele fala das minhas neuras sem mesmo me conhecer, como pode? Li que era devido ao tal do inconsciente coletivo. Fiquei curiosa e o seu mundo se descortinou para mim através das ideias sobre as mandalas, os conceitos de yang e yin, anima, animus… elementos que ainda estou digerindo e desenhando para entender, papo para destrinchar em contos futuros, para leitores que tiverem paciência, fantasia na alma e baixo ímpeto de julgar – escrevo praticamente para elfos.

Por que isso? Que presunção é essa de falar dos conceitos do processo de individuação de Jung e relacioná-los com a minha vida mortal de moradora de um bairro modesto da zona norte do Rio de Janeiro, e depois jogar a mistura na literatura?! Bem, primeiro foi porque eu quis! Segundo, porque é urgente todo ser humano se conhecer minimamente, pelo menos para viver razoavelmente bem; terceiro, porque fazer um check up da alma diminui o sofrimento e, por fim, porque a literatura é especialmente linda para falar sobre a profundidade das coisas e explicá-la sem esgotar as palavras, o que é ótimo, pois me faltaria latim se tivesse que me fazer entender tintim por tintim através de letras. Por sorte, puxo um fio do novelo e ele rola sozinho, como é o esperado. E não tem muita explicação mesmo porque é assim que é.

“O diagnóstico: a neurose é verde”

Ano passado eu comprei um carro. Estava toda feliz, economizei muito para dar uma parcela de entrada e depois encarar as prestações medonhas por dois anos. Era amarelo bem forte, me senti empoderada com a nova posse! No meu Jeep de cor solar eu ganhei a estrada. Pelo menos por dois fins de semana. Em um domingo memorável, quando voltava da praia com umas amigas, radiante, o sinal fechou, depois abriu, mas ninguém andou para frente, só para trás. Cariocas ligam o alerta animal nessas circunstâncias, eu também liguei o meu.

– Meninas, cuidado, é arrastão!

Pisquei meus olhos e um cara abriu a porta do meu lado e me arrancou do banco, sem que eu visse o que se passava. As amigas estavam do outro lado da rua, uma tremendo e a outra vomitando. Minha atitude foi mais calma, fiquei paradinha. Urinando nas calças em silêncio.

Sim, levaram o carro e minha saúde naquele dia. Desenvolvi síndrome do pânico. Não saí mais de casa. Coração acelerava, achava que ia bater as botas a qualquer momento. No começo todos me compreendiam – “Calma, isso vai passar!” – e eu acreditava que passaria mesmo. Após duas semanas a benevolência do chefe não pôde ficar mais tempo entre nós e foi-se embora. Fui demitida junto com ela. Os amigos, muito atarefados, precisavam seguir a vida sem mim, mas eu não deveria me preocupar porque estavam orando por mim e tudo iria se ajeitar. Numa crise nervosa, eu, precipitadamente, dei um jeito neles e cancelei todos. Meus queridos amigos nem puderam ter a chance de explicar a falta de empatia. Que pena!

Foram tempos difíceis. Engoli o meu orgulho para aceitar o dinheiro suado dos meus pais para bancar minhas contas, mas não engoli tanto a ponto de voltar para a casa deles. Não deixaria a coisa piorar. Eles são ótimos pais, mas eu sou péssima filha. Não ia dar certo! Vivi uma guerra civil dentro de mim. Só Deus sabe! Matei alguns demônios, mas alimentei outros. Achava que estava enlouquecendo.

Estava enjoada de comer pão de forma. Queria pão francês, quentinho, na manteiga. Para isso, precisaria atravessar a pé a Avenida Paulista do meu pensamento, sem ser atropelada. Fui devagar pela sala e abri a porta de casa. Venci minha primeira grande luta e alcancei a padaria do Seu João, a trinta metros da minha casa. Para comemorar, comprei na banca de jornal da esquina um livro intitulado Pule mais alto que o sapo. Não sei por que comprei, mas gosto muito de sapos. Antes tivessem amarrado meu nome na boca do sapo! Talvez fosse mais fácil descosturar e tocar a vida! O maldito livro dizia coisas incompreensíveis que, em instantes a porcaria da ideia colava feito um adesivo na minha cabeça: “seja você mesmo”; “liberte-se do que te aprisiona”; “seja, acima de tudo, sincero”. Meu Deus, são coisas que você não pode dizer para pessoas convalescentes e que mal sabem quem são! Pessoas como eu! O livro deveria ter um símbolo igual ao “T” nas embalagens de produtos transgênicos – “Atenção! Não leia, se estiver numa fase ruim!”. E se estiver numa fase boa, por que leria, de qualquer forma?!

Um dia, uma ex-amiga (uma das que eu enterrei no primeiro cancelamento coletivo de amigos que celebrei) foi me visitar para saber como eu estava. Eu sou pessoa educada, de família simples, mas aprendi a me comportar. E sou dócil também. Nesse dia, entretanto, eu usei o conselho do livro do sapo “seja sincera!” e me dei mal.

– Oi migaaaa! Que saudade de você! O que tá acontecendo com você?

– Sério isso?! Por que não me ligou? Vai #$%@&

Senti um prazer enorme por uns dez segundos. Depois veio um gosto de fel na boca. Não foi bom ficar sem a minha amiga definitivamente. Em pouco tempo, só contei com a amizade dos meus cães e gatos e outros bichos que encontrei na vida. Esses sim, nunca encrenquei com eles! Carregam amor incondicional em seus corações! Passei a comemorar o aniversário de cada um com um bolo de chocolate. Eles nem comiam, mas tenho certeza que entendiam a reverência e eram eternamente gratos por me amarem.

Em pouco tempo joguei no lixo o livro dos sapos. Não sou a melhor das pessoas, mas não detestava ninguém a ponto de presenteá-la com um livro pernicioso. E ainda joguei no lixo reciclável para que, pelo menos a árvore que havia ali tivesse alguma serventia para o mundo. Se virasse marcador de texto, eu ficaria muito feliz. Afinal nem todo o mau é tudo mau. Veja os algoritmos, eles podem se aproveitar de você, se você for tolinho (e somos na maioria das vezes), mas também podem ser muito úteis quando se espera um milagre. Comecei a receber anúncios de meditação. Precisava fazer alguma coisa para recuperar as forças e voltar à “normalidade” dos meus dias de outrora. Aquelas cachoeiras que apareciam ao fundo onde as pessoas sentavam-se em postura e semblante apolíneos me atraíam bastante. Comecei a meditar por umas semanas, mas não a ponto de virar um hábito natural como eu via nos depoimentos dos ex-estressados.

Não sabia onde estava errando, mas sabia que estava ficando mais nervosa. Sou como cachorro, obediente e leal aos meus propósitos e, como não quis parar, apenas troquei o tapetinho da meditação e ficou mais quentinho para sentar. E a mente? A mente turbilhonava. Não tinha dinheiro para fazer sessões de psicanálise, eu mesma tinha que dar um jeito naquilo tudo – no desemprego, na solidão, no ódio à música do vizinho, na vontade de ficar em posição fetal toda vez que via a felicidade falsa nas caras das redes sociais – nem me importava que era alegria fake, pelo menos era o escape daqueles infelizes. E eu? Qual era o meu escape? Só me enroscava mais toda vez que pensava nisso. Ficávamos assim, horas nessa posição, eu e os cachorros, mas estes, por motivo diferente, creio.

Certa tarde, um impulso de vida me empurrou – outro algoritmo. Dessa vez apareceu anúncio de curso de desenho para mim. Não sei desenhar, mas eu poderia fazer as pazes com a minha infância pintando mandalas. Só precisei baixar as imagens, imprimi-las e usar lápis de cor. Tinha todo o tempo do infinito para tentar. Pintei a primeira e ficou muito bonita, não me cansava de olhar para aquelas escolhas de cores berrantes, tentava me reconhecer nelas. Jamais colocaria o roxo perto do verde. Por que fiz isso? Ficou lindo. Nesse dia, fiquei estranhamente calma, mas dormi um pouco intrigada, incomodada com a estranha em mim que combinava cores daquele jeito.

No dia seguinte abandonei as mandalas, fiquei com medo de despertar um certo eu em mim, com quem não estava pronta para me encontrar. Confesso que estava bem. Meditei sem câimbras e meu nariz não escorreu. As notícias do mundo não me afetaram e eu poderia arrumar um emprego em breve. De repente eu senti um amor universal por todas as coisas e seres, do alfinete ao jacaré. Até sorri quando pensei no som alto do vizinho, como eu faria se fosse uma travessura de um irmão mais novo querendo irritar a mana. Com esse espírito eu saí de casa, depois de semanas sem contato com a humanidade.

– Jô, minha amiga, me perdoa! Eu não sei o que me deu. Fiquei tão mal naquele dia…

– Não esquenta, querida! Às vezes a gente explode mesmo, precisamos extravasar. Fico muito feliz que você esteja bem agora!

– Não quero mais saber de baixo astral! Sai de mim! Vamos fazer alguma coisa no fim de semana?

– Puxa amiga, nesse fim de semana não vai dar porque eu vou fazer uma trilha com um pessoal muito bacana que eu conheci, você vai gostar deles! Tem um cara…

– Amigos novos, é?! Ah que ótimo! É sempre bom conhecer gente boa, né?

Não me lembro do que aconteceu depois que eu ouvi a frase “pessoal bacana que eu conheci”. Acho que fui teletransportada para a minha cama. Minha doce e venenosa cama! Única companheira que me entende e permanece fiel a nossa amizade, chora comigo minhas dores e angústias e me ampara sempre, por vinte e quatro horas seguidas, muitas vezes! Fiquei de molho por lá… Tive pesadelos horríveis nesse dia, sonhei que eu me entortava até encontrar minhas pernas, irreconhecíveis. Relutei mas disse para mim mesma, “isso precisa acabar”!

Acordei e, mecanicamente, fui para o tapetinho meditar. Sem câimbras, meu nariz não escorreu e esqueci de prestar atenção no resto, ia observar minha respiração, quando a seguinte frase pulou na minha cabeça: A NEUROSE É VERDE! Achei que eu estivesse sonolenta e aquela fosse uma frase entre muitas aleatórias que passam na minha cabeça desde que me dou conta de ser gente, e não dou bola, senão eu piro. Terminei minha prática mental e a frase não quis ir embora. Fiquei muito encucada! E como já estava achando que a loucura tinha me mordido, busquei o Doctor Google. Não decifrei o enigma, mas o algoritmo me levou a Freud e às mandalas de Jung. Descartei Freud, mas fiquei interessada em Carl Gustav Jung.

Há poucos dias estava colorindo umas mandalas para me tranquilizar e de repente chegou às minhas mãos a explicação de Jung, de que no princípio era o verbo… espera aí, esse foi o bíblico João… Quero dizer, no princípio era o inconsciente coletivo! Em outras palavras, na pré-história éramos dominados por nossos instintos gerais de imaginação e ação, por nossas reações de medo do desconhecido, as quais herdamos ainda hoje e ainda conhecemos muito bem. Depois, evoluímos a consciência, de uma maneira geral, até criarmos a vontade consciente, estágio das pessoas desenvolvidas hoje em dia, tal como o meu estado de acamada aqui: evoluída, ciumenta, possessiva, porém, consciente, sabendo que não posso ficar assim, deprê, chorosa, dengosa, cheia de mimimi.

Agora o pulo do gato: nossos instintos (chamados também de inconsciente, self, ou ainda, si mesmo) não morreram! Estão aprisionados, digamos, mas não se calam. E adivinhem como eles falam conosco, com a nossa consciência, também chamada de ego? Através dos sonhos, mandalas e intuição! Pronto, gamei no Jung. Tinha certeza de que a “neurose é verde” foi um recado do meu inconsciente para mim. Restava saber que diabos significava isso. Pressenti que foi o confronto daquele roxo com o verde na minha mandala. Depois, como Sherlock Holmes, segui as pistas do meu pensamento e concluí que o verde está associado à bile, aquele gosto amargo que sentimos às vezes, quando não temos nada no estômago, mas vomitamos assim mesmo, uma brincadeira de mal gosto de nossos refluxos. Pois é… tudo se encaixava… eu estava ressentida com os meus amigos, com a minha vida, com as minhas rédeas, adoecendo. Então, claro que a neurose é verde! Hulk que nos diga como controlá-la! Mas vamos continuar com os bizus do Jung, não quero misturar os super-heróis. O meu psicanalista, famoso, polêmico e gratuito, dizia que eu precisava me conhecer. E ele não se referia ao meu endereço, estado civil, profissão e hobby, mas à intimidade, a qual até então eu desconhecia. Ele queria uma radiografia das minhas neuroses. Eita!

Tratamento 1: conhece o teu lado mais sombrio”

– Fale de seus sonhos!

– Ah, eu queria ser aeromoça quando eu tinha 20 anos…

– Além desse, me fale daqueles que você tem quando encosta a cabeça no travesseiro à noite.

– Ah doutor, não sei não. Tenho vários, mas são meio infantis…

E a vergonha de confessar que tenho sonho erótico com lobisomem?! O sonho é recorrente, varia muito pouco, estou sempre sozinha e em perigo, em uma floresta, bosque ou apenas encostada em uma árvore, numa rua qualquer, pela madrugada afora, silenciosa e cúmplice do que está prestes a acontecer. Tudo sabe que é perigoso estar ali naquele momento e condena a minha presença. A folha seca que cai me intimida e parece rir maliciosamente para mim; o vento gelado me despe e me esbofeta os cabelos no rosto; o galho da árvore, duro, me apoia e me deixa inebriada de desejo. Quando o lobisomem aparece eu já estou a ponto de bala para o bicho me pegar. Ele mal uiva e eu já sou dele, fácil, fácil! Como dizer isso para o psicanalista? Eu só disse porque era o Jung e concomitantemente estava morto!

Não sei se já disse isso antes, mas sou um pouco limitada em relação a abstrações, então fiquei com muita enxaqueca ao tentar decifrar esse sonho. Por muitos dias achei que o meu romance com o lobisomem foi reminiscência da minha infância. Lembro-me da minha mãe me proibir de ver filmes de terror porque eu poderia ter pesadelos depois. O problema era que meu pai gostava de ver filmes enquanto dormia. Ele e a minha mãe cochilavam e meus olhos duros aguardavam o primeiro ronco deles para que, sorrateiramente, eu invadisse o quarto do casal e me deliciasse com os horrores que os vampiros e outros seres inumanos ofereciam aos seus telespectadores. Após o cataporento letreiro velho do The End, de mil e novecentos e bolinhas,subir na tela, eu dormia horrorizada! E feliz! Claro que eu tinha pesadelos. Mas não transava com lobisomens nessa época, o que só viria a se consumar no início da fase adulta.

Li que não devemos esgotar as interpretações dos sonhos, o que me deixa desesperada muitas vezes, mas também aliviada. Não gostaria de concluir que a minha desobediência infantil e pueril gerasse todo esse transtorno na vida adulta. Mas voltando aos sonhos, tenho um outro recorrente. Esse sim, verdadeiramente terrível, de rezar para acordar: eu expurgo demônios das pessoas! Devo responsabilizar “O Exorcista”, “Poltergeist” e outros clássicos de arrepiar a medula óssea pelo histórico de pesadelos? Bem, não conheço nenhum fã de filmes de horror e terror que é assombrado por sonhos recorrentes do mesmo gênero! É clichê demais, viu, ô Senhor Inconsciente! O ápice do pesadelo é a necessidade que tenho de soltar a frase em alto e bom som “Sangue de Jesus tem poder!”, mas no lugar, sai uma voz assobiada para dentro do pulmão, que se deforma toda de medo e emite apenas um encontro consonantal incompreensível para os filhos de Deus: “Sss… Jjjj…”. Nunca terminei o serviço, acordo ensopada de suor e coração a mil por hora. E o demônio me escapa.

Comecei a anotar os meus sonhos. Acordo e faço a descrição de tudo o que lembro, quando é significativo. Curioso, mas durante esse processo, os meus sonhos têm se diversificado, faz tempo que não encontro o gostoso do lobisomem e não tenho exorcizado ninguém ultimamente. Mas sigo anotando outros que vão aparecendo. Tenho flutuado bastante, por exemplo.

– Seus sonhos não são tão particulares assim como você pensa!

– Ah doutor, o senhor não sabe como fico aliviada! Eu achava tão bizarro…o lobisomem e eu…

– O inconsciente não conhece a linguagem consciente, por isso ele se comunica por meio de símbolos. E as imagens escolhidas, muitas vezes são arquétipos velhos conhecidos de nosso inconsciente coletivo, os quais carregamos conosco ao longo dos milênios.

– Os monstros, os demônios!

– E as mandalas! E sabe por que o formato circular das mandalas? Ela exprime o movimento, a união dos opostos. Queremos unir o que foi separado: o céu e a terra, as polaridades da vida, o Yang e o Yin…

Nesse dia a sessão seguiria até mais tarde se não fôssemos interrompidos por meu celular com uma entrevista de emprego. Que alegria! E em tempo, pois eu já estava começando a vislumbrar uma vida à luz de velas para economizar na conta de energia elétrica. As sessões se davam geralmente sem hora marcada! Doutor Jung era muito paciente comigo, sempre que eu abria meu pdf baixado, lá estava meu psicanalista a me ajudar na busca solitária do autoconhecimento. Outras perspectivas estavam se mostrando para mim, como uma luz no fim do túnel.

Tratamento 2: conhece o teu lado luminoso também, juro que você tem!”

Eu sempre achei lindo ver pessoas que fazem o bem por fazer, de forma tão simples e natural como respirar. Já dei esmolas para uma ou outra pessoa e já senti pena de inúmeras outras e termina aqui minha fraternidade, nunca dei passo maior do que uma formiga. Mas sempre quis ter pernas de elefantes, andar como eles e deixar minhas pegadas largas também. Um dia a chance bateu a minha porta e eu não vacilei, agarrei!

Uma amiga me convidou para ir a um abrigo de pessoas abandonadas pela vida, onde ela frequentava dando todo o seu apoio e amor. Foi uma das piores experiências da minha vida! Ver aquelas pessoas definhadas em cadeiras de roda, sem conseguir levar o alimento à própria boca, me causou vários sentimentos nada nobres, além de um mal-estar estomacal que sinto até hoje cada vez que lembro desse vivência. No dia seguinte, minha amiga estava radiante e revigorante, provavelmente por ter cumprido seu dever como ser humano, e eu me sentia a pior da minha espécie sub humana. Pedi desculpas e disse que não poderia mais ajudar. Segui minha vida – mas ainda tenho essa cicatriz…

O soco estomacal não me fez desistir da busca de ser útil a alguém. Há alguns anos atrás, alguém no trabalho precisou de sangue. Investi naquela minha segunda chance de me tornar uma pessoa linda como eu sempre quis! Lembro-me apenas de ter recobrado a consciência numa posição não muito confortável, estava sentada na cadeira de uma sala do hospital, tronco abaixado e com a cabeça apontada para os pés. Alguém fazia pressão no meu pescoço e pedia para eu levantar aos poucos, o que me fez voltar plenamente a atenção para a enfermeira, e ouvi-la dizer que foi a primeira vez que viu alguém desmaiar enquanto media a pressão arterial. Não preciso dizer que desde aquele dia eu quis mudar de emprego, mas infelizmente ainda passei vários anos carregando o fardo das duas vergonhas, a interna e a externa, já que permaneci no mesmo trabalho por quase uma década.

Sempre fui obstinada, para o bem ou para o mal. Meses atrás um caso específico me fez voltar a querer doar sangue. Eu poderia fazer outras ações sociais, mas imaginei como seria sublime fazer parte de um grupo que literalmente salva vidas, compartilhando o que tem de mais precioso na vida, materialmente falando: o próprio sangue!

Sem pormenores dessa vez, pois tenho um nome a zelar, apenas interessa dizer que doar sangue não é definitivamente a forma com a qual devo contribuir para a humanidade. Aprendi a lição quando acordei, após minha terceira grande investida em me tornar uma heroína:

– A senhora sabe qual o seu nome?

– Sei

– Como está se sentindo?

– Estou urinando nesse momento.

Honestamente, não desisti de fazer algo bom para as pessoas. Obviamente, aprendi um mínimo com minhas experiências penosas e meus limites nocauteantes (#meperdoanãopossodoarsangue) e, acredito que vou achar um dia um meio de ser útil e fechar a brecha que me incomoda toda vez que venta. E venta sempre. E tem outras brechas. E sei que existem algumas que não podem ser tapadas por minzinha, o que não impede que eu prepare o cimento e fique pronta para usá-lo no que me cabe. Quem sabe não emboço a brecha de um dia ruim para você, enquanto lê minhas intenções infantis de dizer que precisamos todos de uma vida com sentido?

Tratamento 3: acolhe o bicho papão de bom grado”

Não posso abandonar a minha meta, o meu dharma. Todo mundo tem um caminho a percorrer e ele deve ser o caminho de como você quer morrer. Para início de conversa, vamos todos morrer e isso precisa se tornar fofo, assim como viver! Mas como fazer isso, já que nem todo mundo é mexicano e encara a morte numa boa? Não tenho o hábito de celebrar a morte, mas se eu perder pelo menos o medo dela, acredito que muita coisa iria para frente. Ficaria mais relaxada e menos ansiosa. De repente curtiria mais tentar tocar aquela música no violão ou dispensaria mais tempo vendo as flores brotando nos meus vasos.

– Vejo que você hoje está mais reflexiva, encarando assuntos difíceis.

– Mas não quero morrer, doutor. Estou jogando essa letra para o meu inconsciente para ver ser cola. Não aguento perder nem uma pedra de rua da minha coleção, quanto mais a minha vida…

– Não precisa se esforçar para entender a morte, basta saber que se vai a qualquer momento.

– Para onde? Preciso saber o trajeto para buscar no waze. Vai que eu me perco por aí…

O telefone tocou insistentemente, mas eu estava um pouco lenta para correr e atender minha mãe. Como sei que era a mãe? Todo filho sabe quando a mãe liga. Ela refaz a ligação ininterruptamente, como uma máquina implacável até ouvir a sua voz respirar em resposta. E o mais curioso é que se você atende e diz que não pode falar naquela hora, ela diz que não era nada demais, só queria dar um oi. Ela desliga o telefone em paz. E fica em paz até a próxima vez. Ela não vê o filho; ela não fala com o filho; não ouve do filho o que tem ocorrido com ele; o que fez; o que fará, mas ao ser correspondida com aquele lacônico “oi, mãe”, não há nada no universo do filho que ela não saiba, no seu íntimo. Acho que foi isso que o doutor quis me dizer na sessão de hoje. Não preciso entender a morte, em todos os seus aspectos físico, metafísico e religioso, mas apenas saber que se morre. E quando reflito sobre isso, percebo que não tenho problemas quanto à morte em si, mas sim quanto ao medo de morrer, confesso…

– Caramba, meu problema é o medo! Medo de errar, de pisar, de ferir, de causar, de sofrer, de parar, de continuar, de fazer, de receber, o que gera, logicamente, medo de viver e os seus congêneres, como síndrome de pânico, ansiedade e por aí vai.

– Hahahaha, amiga, você é muito engraçada! Que figura! Teus papos com o Jung são muito bons! Vou levar essa história para a minha terapeuta! Ela vai te indicar um especialista urgente ou vai dizer que você é um caso perdido e uma ameaça para mim!

– Então espera um pouco que eu vou fazer uma apresentação ou um prefácio, ou um prólogo, sei lá. Bem, tenho que contextualizar né? Não quero que ela me ache louca e nem ridícula. E nem burra. Deixa eu dar uma googleada também, para incrementar. Acho que vou começar assim, “vou contar um pouco como tem sido o meu processo de individuação…”, o problema é que eu ainda não sei direito o que é isso… mas tudo bem, pode enviar para ela. Vai que ela resolve me explicar… Amiga, eu já disse que eu te amo, hoje? Nunca se sabe o dia de amanhã, então é melhor não deixar as coisas que importam para depois”.