Virna sempre ouviu falar que a arte existia por si mesma, se tivesse alguma função não seria arte porque ela não deve servir para nada, nem para ninguém. Sua casa não tinha arte, só alguns poucos enfeites, um quadro de animal, umas mandalas, desenhos importantes de criança, álbum de fotografias. A sala nunca conheceu uma escultura, com exceção de uma africana de ferro, figura alongada e muito fina que terminava com braços abertos e dois suportes para velas, um em cada mão, ganhou de uma amiga que tinha muito bom gosto e fazia desenhos com letras, que as pessoas chamavam de tipografia. Virna assistiu presencialmente no máximo a três concertos de música na vida e a alguns shows de rock, já a sua sala, ao contrário, se aventurou mais vezes do que a dona, e curtiu vários espetáculos na TV, do chorinho, bossa nova, pop até o gospel, quando a jovem senhora esbarrava no controle, enquanto cochilava no sofá. Nada ali na casa da curiosa tinha relação com arte porque tudo ali tinha uma função bem definida, os enfeites serviam para os olhos descansarem neles; o quadro de animal remetia-se aos instintos que ela deveria controlar ou saciar; as mandalas lembravam a busca do seu centro interior; os desenhos infantis aconchegavam seu espírito; as fotografias alimentavam sua alma e a escultura segurava as velas que eram acesas em ocasiões especiais. Nada ali estava em vão, de bobeira, tudo sabia o seu lugar, a decoração não tinha intenção de ser arte, com exceção da africana de ferro… essa, a mulher tinha suas dúvidas, às vezes ela não parecia caber somente no suporte de velas, talvez a estátua quisesse andar…
Uma vez Virna esteve em uma oficina de arte para crianças e tudo foi uma descoberta para os seus cinquenta anos. A professora explicou que tudo começava de um ponto, mas esse ponto não poderia estar solto, ele precisava de apoio para não cair, deveria haver uma base chamada de plano, e depois disse também que os pontos juntos e pertinho uns dos outros formavam uma linha, que poderia ser reta, curva, curta, alongada, magrinha, gordinha. A aula seguiu evoluindo o assunto e adentrou nos instrumentos mágicos da cor, textura. Àquela altura a perplexa mulher não conseguiu mais acompanhar o conteúdo do mesmo modo que as crianças porque ela ficou vidrada no conceito dos pontos. Ao chegar em casa resolveu testar e começar a fazer arte, afinal. Pegou sua base, um papel A4, uma canetinha preta, e com a mão esquerda, tampou os olhos, enquanto a direita se aventurou nos pontos. Não quis pensar no que faria, queria arte pura, vinda do âmago do sentimento, do que gritava dentro dela, do que implodiria se não lhe arrancasse para fora. Deixou a mão psicografar tudo o que precisava expressar. Sentiu o sangue esquentar o seu rosto, uma energia saltitava no seu cérebro e a mão percebia tudo o que se passava na mulher, na forma de pontos. As linhas subiam, desciam, estagnavam, avançavam, até se arrependiam, mas a aprendiz não quis apagá-las, tampouco pensou em amassá-las no papel, e muito menos em dispensá-las. As linhas eram sua vida, em ascensão e decadência, não desejava descartá-las, amava a vida, queria apenas mudá-la para melhor, e aquelas linhas responderiam como ela deveria agir. Tinha certeza apenas de que deveria ser de forma leve, mas com energia. Em um breve momento, achou que estava indo na direção errada, então as linhas retas fizeram uma curva brusca assim mesmo, sem vergonha, e tomaram o rumo oposto. Acabado o carnaval de movimentos desenfreados de sua canetinha, ela se chocou com o resultado. Para a sua surpresa, as linhas formaram uma espécie de quadrado. Como assim? Meu Deus, seu quase meio século de vida deu nisso? Num quadrado! Era isso que era? Sua vida estava pronta e definida em partes iguais? Não conseguia encontrar bons sentimentos para aquele quadrado. Precisava fazer algo a respeito. Pensou em levar a sua geometria para aquela professora de arte para crianças corrigir o seu trabalho, ensinar-lhe a ser menos rígida nos traços. Estaria sua mão pesada demais? Estava vivendo com tanto rigor assim? Lembrou que fazia muito tempo que não tirava férias, providenciaria isso o mais rápido possível. Sua vida não seria um quadrado.
Virna ficou reflexiva por alguns dias, perguntou-se qual seria a sua forma se não fosse um quadrado. Pensou no círculo perfeito. Em um primeiro momento, achou muito bonito ser representada por algo redondo e relaxante, mas logo em seguida, sentiu-se claustrofóbica, imagina ir tão longe para depois voltar para o mesmo lugar! Sentiu náuseas. Talvez o triângulo a exprimiria melhor. Sua feminilidade, sua versatilidade, ela poderia ser um triângulo escaleno, forma que achava que se comunicava com sua essência, de medidas diferentes, de olhar diferente, opiniões livres do peso do olhar do outro. Ou talvez, uma forma isósceles também explicaria seus pensamentos intuitivos barreirados pelo lado do contra, que só poderia ser o ângulo racional que a freava sempre que possível. Ou ainda, quem sabe, o equilátero a entendesse melhor, com seus lados iguais, fraternos, harmônicos, sem perder a ternura. Ainda bem que não se lembrava muito das outras formas geométricas, provavelmente se encantaria com todas elas e estaria diante de uma grande crise de identidade.
Como não chegava a uma conclusão sobre qual forma seria melhor representada, achou melhor enquadrar o seu quadrado e deixá-lo na sua estante, até ter uma ideia melhor. Sua sala aprovou e assim o quadro tomou o seu lugar, e tornou-se mais um objeto de sua sala. Começou a tomar gosto pelo quadrado. Olhou para os outros enfeites e chegou à conclusão de que não gostaria de trocar a sua decoração por objetos de arte. Tudo ali fazia sentido e cumpria a sua função, bem definida e quadrada, do jeitinho que ela gostava. Com exceção da africana de ferro, que segurava os suportes de vela, e queria andar. Essa a incomodava. De repente essa era arte. Vai saber o que é arte!