
Geisa queria mudar a sua vida, mas não sabia como.
Quanto mais se esforçava, menos chegava a algum lugar. Trabalhava fazendo faxina todos os dias úteis de sua vida. Era duro sim, mas talvez fosse mais duro para as patroas que a olhavam com admiração de sua força e vergonha de usurpá-la em troca de algum dinheiro. Acabava o dia e elas ficavam péssimas com suas casas brilhantes e cheirando a lavanda, enquanto Geisa voltava para casa rindo da piada que ouvia no trem. A mulher era pobre, e também sabia se divertir, não tinha porém.
A diarista nunca ficava doente, não se sabe se era pura saúde, ou se era proibida dessas frescuras de dor aqui ou acolá, ou quiçá porque todos rezavam por ela, por sua vida, e distraidamente, pela regularidade do seu trabalho. Fato é que todos se perguntavam de onde vinha a motivação daquela mulher. Nunca rezava, mas soltava um “graças a Deus” às vezes, quando sentia que devia, para tranquilizar aqueles que esperavam a sua fé proclamada em voz alta, pois viver com saúde e vitalidade em meio a tantas adversidades, só parecia viável se acreditasse em Deus.
Havia deixado o quinto ano do ensino fundamental na sua longínqua infância, mas se matriculou em uma escola à noite para terminar os estudos. Para que? Já tinha seus sessenta e poucos anos lhe correndo atrás, inutilmente, pois a danada driblava pelo menos uns vinte invernos que desistiram pelo caminho. Qual a razão de continuar a estudar? Sabia que não arrumaria um emprego melhor por isso, sabia que não aprenderia muita coisa em tão pouco tempo, então, por que continuar? Ninguém nunca ousou perscrutar suas intenções, provavelmente por medo de descobrir a verdade. Ela não viraria uma recepcionista bilingue, tampouco arrumaria um emprego administrativo nas Casas Bahia. Ela experimentaria concluir algo que ficou para trás, o que tem muito mais valor do que qualquer emprego. Ela diria, “Ah, eu quero escrever com uma letra mais bonita, sabe?”. E todos entenderiam a profundidade disso. As patroas esconderiam os cremes anti-idade e o protetor solar facial FPS 200, e ressuscitariam seus sonhos genuínos incompletos e esquecidos, abafados pelo modus operandi materialista.
Geisa pleiteava muita coisa material, não se enganem. Ela queria ganhar mais dinheiro para empanturrar sua geladeira para os netos, que viviam em sua casa, em busca de encher suas vidas com a alegria da vó e também suas barrigas. As patroas tentavam ajudar como podiam, “Geisa, desse jeito você vai se matar de trabalhar, mulher! Seus netos têm mãe!”. Pensa que a diarista ligava para esse conselho bonito e inútil? O filho foi assassinado na favela onde moravam, deixando, por sua vez, sete filhos pequenos e um na barriga da viúva. As patroas lavariam as mãos como Pôncio Pilatos se as carnes fossem delas? Elas se prostram perante UMA cria! Uma única cria! Mas a trabalhadora doméstica também era uma cria. Da vida. Deixava as dondocas falarem, era o que restava para elas, gostavam de frases de efeito. Se respondesse à altura, poderia perder a gorjeta, e isso não estava em seus planos. Como já foi dito, a faxineira queria mudar a sua vida.
Ontem Geisa não foi trabalhar. A patroa número três ficou apreensiva porque a diarista costumava chegar muito cedo, e já passava das 07:30h, e nada da guerreira tocar a campainha. A mulher até dormiu cedo para recebê-la, e acordou radiante porque sua casa receberia o carinho da melhor profissional que já conhecera. Preocupada, ouviu a mensagem no celular, – “Não vou poder ir hoje, desculpa, mas tô com o dente doendo, já tomei um monte de remédio aqui. Desculpa, tá?” – acompanhada de uma foto com os medicamentos que estava tomando. Na mesma hora, a patroa projetou um dente careado imaginário em sua própria boca bem cuidada, e conseguiu até sentir a dor que latejava Geisa, e lamentou profundamente a má sorte da trabalhadora. Aconselhou-a a ir ao dentista assim que o dente desinflamasse.
– “Eu já fui! Já tinha planejado tudo, ia dizer que não tava doendo porque aí ela ia arrancar o dente, né? Dente inflamado eles não mexem! Mandam a gente de volta para casa, né? Mas aí, que aconteceu? Não tinha mais vaga, aí fui embora, fazer o quê? Volto lá amanhã”.
Até na dor a mulher era firme e forte, rocha pura! Enquanto a patroa número três choramingava a dor de Geisa, esta já estava pronta para outra, infelizmente. No dia seguinte, a dor de dente tornou-se uma poeira do passado, e a pobre mulher mandou um vídeo que mostrava seu quarto banhado em água. – “Olha só! Eu acordei de madrugada com a chuva forte e vi a casa toda alagada! Tá vendo aí, a água só não cobriu o colchão porque a cama é alta”. Com horror, a patroa número três viu a geladeira que Geisa comprou e ainda nem pagou, com água lhe cobrindo até a metade. A máquina de lavar, outros eletrodomésticos e todos os parcos móveis duvidavam se conseguiriam funcionar depois do dilúvio pelo qual passaram. A filmagem continuou, mas feita por um ângulo de cima, pela parte externa da casa, mais precisamente onde era o quintal.
– “Então, eu ia fazer o que? Não ia dar para dormir, né? A única coisa que eu pude fazer foi pegar uma escada, subir o muro e tomar uma cerveja, né?”
A patroa número três não acreditou no que viu e ouviu, e voltou o vídeo umas três vezes para se certificar de que Geisa não estava mesmo chorando, ou se lamentando, ou culpando Deus, ou o governo, ou ela mesma, ou os demônios. Passados dois dias, a diarista voltou ao trabalho com a mesma energia e coragem. A patroa número três foi mexida e remexida por dentro. Fascinou-se por Geisa, dispensou conselhos que diziam que somente ela mesma encontraria as respostas para suas questões. Isso é conversa de quem não sabe das coisas! Aquela diarista era uma sábia. Pobre, sem educação escolar, feliz e sábia! Quem diria que uma mulher assim, sem pós-graduação, soubesse viver?! A dondoca deixou de assistir às séries de drama estrangeiras porque aprenderia infinitamente mais com a história de vida de Geisa. Deixou de buscar palestras no YouTube de auto-ajuda, e passou a bisbilhotar a vida da diarista como se estivesse espreitando uma celebridade do BBB! Analisava como Geisa respondia à vida e tentava imitá-la. A pobre mulher feliz, no entanto, mal sabia dessas coisas todas que se passavam na cabeça da patroa número três. A diarista apenas continuava querendo mudar a sua vida, sem perceber que a sua vida mudava outras.