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Luana vivia retesada, mas ninguém sabia, não era visível. Por fora, ela era amável, educada, sorria, esforçava-se para ser uma boa pessoa, e era mesmo. Por dentro, porém, cultivava certos sentimentos nada virtuosos. Esse choque de mulheres distintas em si mesma provocava-lhe o retesamento. Vez ou outra ela tinha conversas inacreditáveis com uma vizinha maluca. Todos do entorno já haviam se irritado com a destrambelhada várias vezes, soltavam gatos e cachorros em cima dela. Luana, no entanto, com toda a sua elevação espiritual, parecia querer se santificar com a tomada de rumo das prosas com a insana. “Você tem que ficar de olho nas pessoas! Se alguém ficar com muito sorrisinho para você, é uma víbora! Entendeu, Luana?”. E a bobona balançava a cabeça, tentando compreender a mulher, dando ouvidos, dando corda, e lá se passava o dia inteiro no portão entreaberto, sem filtros para as loucas suspeitas, acusações e ofensas desmedidas a qualquer um, do padeiro ao marcador de luz. Luana só se despedia quando as câimbras de suas pernas a ameaçavam com uma queda merecida. Mal fechava a porta de casa e sentia o retesamento lhe caindo sobre os ombros, pescoço, cabeça. Os anti-inflamatórios não faziam mais efeito. Ela só esperava o inferno ir embora.

A dor no corpo passava, mas em seguida vinha a dor na alma; essa, bem pior, sem antídoto ou qualquer alívio. Luana só podia ter ódio de si mesma, não sabia por que não reagia, por que se maltratava tanto, nunca descobriu o motivo de tanta mágoa por si mesma. Sempre foi uma criança normal, com uma criação normal, uma adolescente normal, uma mulher normal. Não merecia castigo gratuito por viver assim, normalmente! Se alguém perguntasse como ela estava, a infeliz apenas diria que tudo ia bem (ainda que estivesse uma frangalha) e, devolveria a preocupação com a mesma indagação, mas a interlocutora nunca estaria bem, teria problemas no casamento, no trabalho, afinal quem está verdadeiramente bem, não é mesmo?! A pobre Luana se compadeceria de verdade, diria que tudo passaria, que não havia motivo para se preocupar, e a abraçaria, e choraria junto com a pessoa. Sua injeção de ânimo funcionaria, depois as duas almas acabariam sorrindo plasticamente de tudo, com a impressão de uma leveza de vida, até o momento em que Luana se recolheria para os seus aposentos, e diante do juízo das quatro paredes, seu mundo consolador de dores alheias a chibataria por ter se doado tanto, a ponto de não sobrar mais migalha alguma sua. Fato é que Luana se retesava. Era assim a sua vida.

Às vezes o mundo lhe dava trégua e ela morreria por esses instantes. Hoje ela aproveitou uma folga e foi à livraria. Adora ler, mas anda tão sem tempo pra si… No entanto, nada no mundo a impediria de ser feliz nesse momento que seria só seu. O paraíso congelou no friozinho do corredor de categorias variadas da loja: literatura, história, arte, culinária, viagem… Os olhos de Luana brilharam quando ela cheirou os livros. Como uma boa pastora alemã, ela farejou os melhores. Sentou-se espaçosamente em um pufão que a recebeu de bom grado, e se permitiu ficar. Naquele instante, ela só quis calar e fitar a livraria. Os livros a entendiam muito bem. Eles velavam e revelavam na medida certa. Luana tinha muito a aprender com as letras. Ela só sabia cobrir seus sentimentos, suas opiniões, suas dúvidas, sua palavra real, mas agora ela não iria pensar em seus defeitos, afinal não era todo dia que tinha uma folga do trabalho e da chata que virou de si mesma! Aproveitou e desfrutou de todas as histórias que pôde ler, enquanto ali estancou. Sentiu-se muito bem dentro da loja, em cada esquina de estante, porém, contida e retesa que era, em sua essência, voltaria para casa só com um livro. Lamberia os parágrafos pela borda, bem devagarinho, para não acabar logo. No caminho de volta para casa, feliz e viva, quase não percebeu o toque do celular. Era do trabalho. Um pedido para cobrir uma colega que estava doente e precisou ir ao médico. Luana apenas disse sim e foi para o trabalho com o livro na mão. Não pensou em nada. Só foi. Levou o corpo, era tudo o que tinha nela. Não teve raiva, não sentiu pena de ninguém, não refletiu, apenas foi. Vez ou outra alisava o livro como um amuleto de sorte.

Os colegas do trabalho, tomados pela dor que não afetou Luana, disseram-lhe que era muito tonta, não deveria ter aceitado aquele abuso, pura injustiça ir trabalhar em dia de folga! Luana não sorriu dessa vez. O chefe, muito agradecido, jurou recompensá-la com duas folgas. Nada disso arrancou algum sentimento ou palavra da mulher retesa. Tentando reparar o clima pesado, o diretor simpatizou-se com a capa do livro, do qual Luana ainda não havia desgarrado até então, e perguntou se era bom. A resposta veio em alto e bom som de dentro de Luana: “Pow, pow, pow, pppprow”. O que dizer desse momento que parou o universo? Luana simplesmente peidou todas as suas dores guardadas e implodidas. “Ppprrrrrrrrrrraaawww”. Foi um momento único e inesquecível em sua vida. Junto com o pum saído, tudo o mais que prendia sua vida retesa evadiu-se e, no lugar, nasceu uma imensa liberdade que se escancarou numa risada grossa e orgulhosa de quem não teme mais nada. Luana peidou a chata da vizinha louca e também todas as pessoas que sugavam o seu sangue, e deixavam no lugar apenas uma santa correndo nas suas veias. A mulher ficou até mais alta porque o peso do retesamento caiu no chão e se espatifou. Luana se sentiu estranhamente bem-vinda em um mundo novo que se descortinava na sua frente, um mundo orgânico, onde se excreta, pode-se dizer o que pensa (com polidez, preferencialmente, o que não não foi possível, mas eu a perdoo!), aceita, recusa, acusa, ama, odeia, reflete, perdoa, arrepende-se, vive-se, morre-se. Luana se sentiu muito bem, não se desculpou, “É uma edição nova de Marquês de Sade. Se quiser, eu empresto depois”, disse ao chefe, com ar triunfante. Desencanada, a nova mulher se sentou e começou a trabalhar, indiferente aos olhos atônitos ao redor, verdadeiramente renovada por dentro. Nada mais de retesamento.