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Pretendia cortar os excessos, mas tive medo da falta. Abri o armário e comecei a limpeza: tirei as roupas mais pesadas primeiro. Surpreendida, arranquei peças as quais não me lembrava de que jaziam ali dentro há anos, mas julgava-as necessárias só por estarem salvaguardadas (inaplicáveis, intocáveis, quase sagradas). O mesmo aconteceu ao me mudar para longe do mar. No começo, achei que sofreria por não poder mais molhar os pés na água salgada, se o quisesse, ainda que raramente o fizesse. O fato é que, mesmo longe, o mar nunca me faltou quando precisei dele.

O gosto da saudade me bateu de leve quando um pingente esquecido caiu da prateleira mais alta, e me entristeci com a memória do cãozinho que não estava mais comigo havia três décadas. Ao mesmo tempo, não pude evitar de rir do cheiro horrível de sua orelha, subindo até o meu nariz. Parecia que ele estava presente. Senti o odor simpático da lembrança do meu Bandite. Dei um cordão ao enfeite e o encoleirei em meu pescoço. Por que depositei aquela alegria em uma altura tão inalcançável para as minhas mãos, por tanto tempo? Nunca o deveria ter guardado. Um pingente assim se usa até o fim.

Continuando, arranquei o edredom verdinho, mas nesse eu parei. Esse apego eu não tiraria do lugar onde estava. E se eu sentisse o tal frio de novo? O de me cobrir toda com sua magia e voltar a brincar de briga de pernas junto com o meu menino pequeno? Não suportaria se me faltasse esse chão, ainda que o filhote já estivesse crescido e não precisasse mais que eu o cobrisse com o verdinho. Estranhamente, me senti feliz ao imaginar qualquer criança se aconchegando naquele faz de conta, e assim a coberta pôde sair com maior facilidade do móvel, sem me acusar ou me causar danos. Ele estava pronto para novas aventuras. O edredom. E eu também. Desapego.

Era a vez dos jogos de fronha novinhos e amarelados, presente da minha mãe. Tanto amei, que nunca usei. Poderia consertar as coisas ligando para ela. Resolvi não repetir o erro com a minha genitora. Joguei as fronhas na sacola, como quem acerta uma cesta de basquete.

Após a doação da minha estória de panos, restou no lugar uma nudez alegre e um imenso espaço a se explorar nos meus armários internos.