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A sala é fria, as cadeiras fazem um círculo tentando aproximar aquelas vidas. Chega a vez dela se levantar:

– Boa tarde! Eu me chamo N. e sou viciada em problemas… Acordo pensando em problemas, passo o dia pensando neles. Sei que devo evitar, sei que não fazem bem, afastam da família, dos amigos… só pioram minha condição… putz, mas mesmo assim não largo! Sei também que isso é irracional. Sei tudo! Mas sabe… os problemas me aliviam por alguns momentos… fico em êxtase porque eles me desafiam e ocupam a minha vida… – alguém tosse na sala.

– No fundo eu penso assim: quem tem problemas, tem status, tem coisas a resolver, tem propósitos! É louco isso, mas eu acho nobre! Quem vive “de boa com tudo” é só mais um zé ninguém, uma pessoa à toa na vida, descartável, odiável, até! Todas as pessoas inteligentes que admiro tiveram problemas e grandes! Meus ídolos de rock morreram porque tinham as drogas; meus escritores favoritos eram todos muito perturbados. As pessoas que mais estimo são ou foram muito esquisitas… Percebem? – outra tosse.

– A questão, no entanto, não é tão simples assim. Dá muito mais trabalho ter problemas do que não tê-los. Quando acordo, ainda de olhos fechados, a primeira coisa que me vem à cabeça, por mais que eu tente desviar o pensamento para outras coisas, é uma sensação boa, uma vontade de me esticar toda, uma vontade de ver a cor do dia! Logo em seguida, eu sinto uma imensa alegria ao abrir os olhos e ver o marido ao meu lado, dormindo tão fofo… Sinto um bem-estar em saber que os amigos estão bem! A família vai bem! Todos gozam de saúde… Olha, é difícil me desvencilhar desse estado de espírito quando eu acordo… Em seguida, me espreguiço imitando as gatas. Elas sabem se alongar com esmero e, sem querer eu aprendi como se faz de tanto observá-las… – um pigarro mais forte é ouvido.

– “M-mas o dia é longo”, penso. “Terei muito tempo para viver meus piores problemas possíveis!”. Então, levanto da cama e, quando abro as cortinas e as janelas para os ácaros morrerem, geralmente, eu saio correndo do quarto para não ser contagiada por aquele raio de sol mágico que faz a gente sorrir à toa. “Não! Meu foco não é esse! Tenho vários problemas hoje”, repito o meu mantra. E hoje, em específico, o dia estava recheado deles, para o meu deleite! – alguém boceja.

– A torneira da pia da cozinha estava vazando; briguei com o marido; discuti com a vizinha; a internet estava uma porcaria! Meu notebook, uma carroça, e o homework, fadado ao fracasso, não iria abrir um simples arquivo de texto! Tive também o problema do filho, – a escola não está mandando conteúdo durante a pandemia e o menino amanheceu, ou entardeceu, ou anoiteceu, sei lá, com os olhos esbugalhados de tanto jogar videogame – precisava pesquisar aulas de matemática para ele! Nem me importei se ele está no quarto ou quinto ano do ensino fundamental e ainda está fazendo contas de multiplicar, eu pensei logo em dar juros compostos para ele resolver! Eu não sei nem mais o que são juros simples, mas estava com tantos problemas que eu poderia transferir alguns para ele também. Assim ele já ia se acostumando aos desafios da vida… – um ranger de cadeira atravessa o ar.

– Bem, quando me dei conta, já era início da noite e percebi que não me dediquei como deveria a nenhum dos problemas do dia. Fiquei arrasada! Acho que não tenho vocação para nutri-los. Sei que deveria ficar feliz por me esquecer deles, vocês devem estar pensando mas, puxa, um sentimento de fracasso se apoderou de mim. Não consegui manter comigo um único problema sequer! O que fiz do meu dia? Querem saber? – olhos semicerrados se fixam em N. por falta de alternativa…

– Vou dizer a vocês o que fiz do meu dia! Apenas me permiti observar as formas que as nuvens fizeram nas diferentes horas em que elas resolveram passar na minha janela… Ah, também consegui consertar meu notebook… entreguei o trabalho; agendei um técnico para a torneira; dei uma muda de manjericão para a vizinha; fiz as pazes com o marido; em vez de juros compostos, resolvi ensinar à criança o que era um advérbio… Foi um dia bem simples, não senti que me envolvi realmente com problemas hoje. Daí minha insatisfação e motivo pelo qual estou hoje aqui revelando o meu dia fracassado, em que nenhum problema de verdade conseguiu me capturar. Sinto-me triste…

– Deve ser tudo por culpa daquele sedutor raio de sol que entra no meu quarto pela manhã! Eu sei que vocês vão dizer que isso é um avanço para mim, que estou melhorando, mas acho que vou colocar um grande black out nas minhas cortinas! Hum… Obrigada!

Ela se senta. Chega a vez dele, que se levanta:

– Boa tarde! Sou R.R e sou viciado em problemas. Diferente de N., eu me entreguei de corpo e alma a minha amante nas últimas semanas. O resultado foi que a minha mulher me largou e não aguento mais essa solidão em minha vida. Está tudo muito quieto e em paz. Sinto falta da minha mulher desconfiando quando eu dizia que ia jogar uma pelada com os amigos, e também sinto falta daquela tensão das duas quase se encontrando… – alguém tosse.